O senhor tem razão, a impressão que se tem aqui é de um conto de Natal: em toda parte a neve pura e celeste, e um silêncio solene; isso me transporta de volta a minha infância, quando o inverno era para mim uma espécie de experiência sobrenatural. Essa solidão da neve que agora nos rodeia é de novo uma mensagem do mistério da “paz” e, portanto, também de uma serena sublimidade (serenitas), de libertação espiritual; não deixa de ter sentido que em alemão as palavras “paz” [Friede] e “liberdade” [Freiheit] soem de forma semelhante, e também “alegria” [Freude]; o que me leva a pensar na deusa Freia — não é à toa que esta palavra significa “mulher” [Frau], a Suprema Realidade feminino-divina da felicidade, do amor, da beleza e da fertilidade; o que corresponde à Lakshmî hindu. Em termos islâmicos, poder-se-ia dizer que o mistério da expansão, da expiração, do peito, portanto da inshirâh, surge como resultado do salâm; ou do islâm, quando se entende esta palavra em seu sentido primordial. Várias vezes já me referi a isto.
O manto de neve que agora jaz sobre esta área me lembra do significado espiritual da neve como elemento cristalino: ela ilustra a bênção celeste, a descida celeste — pois a neve tem em si algo de paradisíaco — e também uma Presença celeste purificadora, longe de toda luta das paixões; de forma semelhante sinto, nos países islâmicos, o chamado à oração, cujo som desce do Céu e que de certa foram dissolve todo ruído terreno.
Em relação com o milagre da natureza invernal, gostaria de dizer algo sobre as outras formas de manifestação da água, antes de tudo sobre a chuva, que o Alcorão compara com a bênção que dá a vida; ela simboliza a Iluminação vertical e direta que desce do Céu, em contraposição com a tradição horizontal, que transmite o sagrado de forma apenas indireta, e cujo símbolo é o rio. O rio vem da fonte — esta é a Revelação história e única —, enquanto a chuva não tem uma origem terrestre determinável; “o vento sopra de onde quer”; assim, a chuva significa a bênção espiritual intemporal ou que pode vir a qualquer momento. Essa bênção “cai do Céu”, e esse Céu está “dentro de vós”.
O lago transmite uma mensagem semelhante à da neve que tudo cobre com sua paz: ele é a Presença celeste, a Presença do sagrado que paira acima de tudo o que é mesquinho, é a Sakînah; contudo, de certa forma, ele está mais perto da vida real, menos distante deste mundo do que o manto da neve, e contudo ele é totalmente sagrado em sua calma e seu silêncio contemplativos. O lírio d’água e o cisne são aparentados ao lago, assim como os caniços e o salgueiro-chorão; e a Lua que nele se espelha; durante o dia, o caminho dourado do Sol.
E então o mar: ele fala do Si infinito, da força divina primordial; e também, em sua incomensurável imobilidade, da Paz; não é por nada que todos os rios desaguam no oceano.
O rio e o lago são ambos Presença do sagrado: o rio como força, como movimento, e o lago como tranquilidade existencial, como uma condição de pureza (…).
A estas considerações, gostaria de acrescentar o seguinte: toda experiência ou operação dos sentidos, direta ou indireta, que seja necessária, quer ela seja corporal ou anímica, tem um valor por assim dizer sacramental e um efeito correspondente, ao menos em princípio; no homem primordial e nos sábios iluminados, também concretamente, o que se dá pela natureza das coisas. Mestre Eckhart disse que aquele que compreendeu este mistério — ou seja, que o realizou — cada vez que come ou bebe recebe a Eucaristia; isso indica a santidade do alimento e do comer e do beber; por isso há povos ou tribos que, ao se alimentar, guardam um silêncio de temor reverencial, e está também aí o significado profundo da oração que se faz antes das refeições. Algo semelhante se aplica a outras experiências dos sentidos que sejam nobres, acima de tudo ao amor, e depois também à visão e à audição, pois ambas podem ser mundanas ou sagradas, exteriorizantes ou interiorizantes. Santidade do que é natural; santificação do que é natural; santificação pelo que é natural; nisso reside a nobreza espiritual do ser humano. Também se poderia dizer que essa nobreza é a devoção, portanto a Lembrança de Deus, quer seja direta ou indireta. E a isto está ligada a gratidão, pois o homem nobre não se deixa levar pelo hábito, ele vive o símbolo e a beleza sempre como algo novo, como no primeiro dia em que os encontrou; e por isso sua alma não envelhece, ela permanece numa infância intemporal e torna-se cada vez mais fiel a si mesma.
Frithjof Schuon, carta de 18 de janeiro de 1982 a Hans Küry. Traduzida do original alemão.
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